Poucas vezes o mundo quis tanto olhar para a frente quanto em 1922. Afinal, o passado recente tivera uma guerra mundial de proporções sem precedentes, com os mais avançados artefatos tecnológicos e industriais colocados a serviço da carnificina.
E, nos estertores do conflito bélico, eclodira ainda uma pandemia que contagiara um quarto da população do planeta.
Relativamente poupado pela I Guerra Mundial, o Brasil foi duramente atingido pela gripe espanhola.
Aliás, a força-tarefa naval que nosso país enviou para contribuir com o esforço bélico dos Aliados viu-se debilitada pela pandemia, que ceifou as vidas dos marinheiros e paralisou os navios na costa africana.
Em 1922, comemoramos o centenário de nossa Independência. Uma efeméride que normalmente induz reflexão sobre o passado, e suscita questões sobre identidade nacional.
Mas tivemos também a Semana de Arte Moderna. Nesta, a definição da identidade projetava-se no sentido do futuro.
Em outras palavras: a questão do nacional colocava-se como orientadora do projeto da Nação, pautado por uma agenda estética que reivindicava incorporar tudo de mais avançado, ousado e experimental para devorá-lo antropofagicamente e transformá-lo em elemento constitutivo de nossa identidade.
Um século se passou desde então. Veio uma outra guerra, ainda mais mundial, mais tecnológica e mais devastadora.
Essa, felizmente, já ficou para trás há tempos – e deixou bem claro que qualquer nova aposta em um conflito bélico global com tecnologia de ponta acarretaria no aniquilamento do planeta como um todo.
A pandemia que assombrava o começo do século XX também se foi – mas surgiu uma outra, pelo menos tão devastadora e assustadora quanto a gripe espanhola.
O bicentenário da Independência e o centenário da Semana de Arte Moderna oferecem-nos, em 2022, uma oportunidade de repensar o passado, redesenhar nossa identidade e, a partir dela, fazer novas projeções para o futuro.
Ao examinar os cem anos decorridos desde 1922, percebemos que, ao devorar antropofagicamente as influências estrangeiras, e mergulhar no conhecimento de suas raízes, o Brasil foi capaz, em todos os campos, de produzir arte original, vibrante e criativa.
Em diálogo com o projeto modernista, soubemos transcendê-lo, à medida que incorporamos quem ficou do lado de fora do Teatro Municipal de São Paulo em 1922, e produzimos uma arte cada vez mais plural do ponto de vista estético, regional, étnico, de gênero e de classe.
E é essa agenda inclusiva e participativa que desejamos projetar para o futuro. O Brasil é imenso. E a arte que traduz, reflete e representa o Brasil não pode ser menos do que isso.
Irineu Franco Perpétuo é um jornalista cultural, dedicado à música erudita, e tradutor literário brasileiro.